A páscoa e o dilema do consumo de carne

Rainbow indignada

Para os cristãos, a Páscoa é uma data de extrema importância que celebra a ressurreição de Cristo três dias após a sua morte por crucificação. A Páscoa também é definida por teólogos do mundo todo como uma “esperança viva” atribuída por Deus. Ou seja, uma data propícia para a restauração da fé em um mundo mais auspicioso, justo e misericordioso.

É exatamente no período que antecede a Páscoa que os cristãos se abstêm de “carne” – na realidade, quase sempre carne vermelha, e jejuam principalmente na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. No entanto, é usual o consumo de peixes. Mas não seria o peixe um ser carnoso? Assim como o boi, o porco, o frango?

De fato, e inclusive com níveis de senciência e consciência equiparáveis a outras espécies animais, segundo o artigo “The Fish Intelligence, Sentience and Ethics” (A inteligência do peixe, senciência e ética), publicado na revista Animal Cognition em janeiro de 2015. Mas, claro, não precisamos de pesquisa alguma para concluir que um peixe sofre antes de morrer – basta testemunhá-lo se debatendo fora d’água enquanto é violentamente vitimado por asfixia.

Porém, é importante ressaltar tal fato porque exemplifica o equívoco da ideia de um “jejum de carne” nesse período – algo tão propalado por tanta gente que ignora o fato de que o peixe também é essencialmente um ser carnoso repleto de vida e interesse em não sofrer e morrer precocemente.

De acordo com o padre Paulo Ricardo, o jejum no período de Páscoa é uma prática plurissecular que mostra aos cristãos a importância de uma vida de ascese (prática que visa o desenvolvimento espiritual). Ou seja, o jejum do consumo de animais, desconsiderando o peixe, é uma forma de se alcançar à virtude da temperança, “uma virtude moral que modera a atração pelos prazeres, assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade.”

Mas se o “jejum de carne” representa algo em tão alta estima pelos cristãos, sendo apontado como uma grande virtude moral, por que não se abster completamente desse consumo, e não somente no período de Páscoa? Por que não incluir os peixes nessa abstenção fundamentada na virtude moral, já que eles também são animais? E como são sencientes, será que não inspiram a misericórdia da renovação da fé cristã? O exercício da violência contra outras espécies não é inclemente, em oposição ao desejo de um mundo justo e misericordioso?

Francisco de Assis, uma referência para milhões de católicos do mundo todo que se alimentam de animais, dizia que “todas as criaturas são nossos irmãos e irmãs”, e que eles não são seres com menos direito à vida do que os humanos – tanto que ele compartilhava suas pregações com pessoas e animais. Discursava que o seu amor por Deus se manifestava por meio de seu amor e respeito por criaturas humanas e não humanas.

Independente de seus hábitos alimentares, não seria uma mensagem de que não devemos endossar a violência contra outras espécies? Animais que domesticamos e tornamos vulneráveis para atender aos prazeres que não controlamos? À volúpia do paladar? Embora símbolo inquestionável do antropocentrismo no seio da civilização cristã ocidental. Tomás de Aquino escreveu na “Suma Teológica” que “o jejum (de carne) foi estabelecido pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, cujo objeto são os prazeres sensíveis da mesa.”

Mas não é isso que a maioria dos cristãos faz o ano todo, quando se alimentam desnecessariamente de animais? E, claro, para além da questão da virtude moral vaticinada pela Igreja Católica, sabemos que o consumo de carne não é essencial à vida; basta considerarmos a existência de veganos e vegetarianos saudáveis. Sendo assim, resta-nos uma conclusão – não há nada de nobre e equânime em comer animais, porque representa basicamente a primazia do paladar, ou seja, os “prazeres sensíveis da mesa”, que normalmente as pessoas não controlam por condicionamento, hábito e conveniência.

Aliás, muita gente usa Jesus para justificar o consumo de carne, afirmando que ele também consumia peixe. Mas se esquecem do detalhe que na época dele, há mais de dois milênios atrás, o alimento era escasso, não existia mercados, restaurantes, self service, comodidades de serviços de entrega, etc. Na época de Jesus, alimentação era uma questão de SOBREVIVÊNCIA, hoje é uma questão de ESCOLHA (como os próprios vegetarianos e veganos demonstram atualmente, tendo uma vida perfeitamente saudável).

O que Cristo mais fazia era discursar sobre a revolução do respeito, da dignidade, do amor incondicional, e ele fazia isso desafiando as pessoas da época a romperem as barreiras intelectuais, a desenvolverem a arte de pensar, de serem autocríticas, de questionarem as própria crenças e evoluírem tais virtudes com o passar dos anos, décadas, séculos…. ou seja, comparar uma dieta alimentar de mais de dois mil anos com a atual é o pior dos retrocessos, e ainda usar Jesus de exemplo é autodenunciar o fato de que não aprendeu nada do que ele ensinava.

A humanidade está seguindo o caminho de Cristo?

Todos os anos no Brasil, sem qualquer piedade, são sacrificados mais de cinco bilhões de animais, não por saúde, sobrevivência ou legítima defesa, mas por hábito, tradição, sabor e obviamente, dinheiro. Afinal, qual é a definição de holocausto? Seria o massacre de seres humanos ou o massacre de seres inocentes? Obviamente que é este último, o que nos leva ao maior dentre todos os holocaustos. Jesus foi capaz de sacrificar a própria vida pela humanidade, que por sua vez não é capaz nem mesmo de sacrificar o hábito, tradição e paladar.

Jesus salientava que jamais deveríamos perder a fé.

Peguemos de exemplo o argentino Claudio Bertonatti. Nas palavras do próprio Claudio: “Vegetarianos e veganos cometem equívoco ao acreditarem que não estão matando animais. Visitem um campo de produção pecuária e outro de produção agrícola na mesma região e anotem a diversidade de formas de vida que veem em cada um deles. O resultado será inequívoco: um cultivo (soja, trigo, milho ou arroz, para citar os mais difundidos) não convivem com muito mais que si mesmo. Inclusive, acontece isso com a horta mais orgânica do mundo. As espécies animais não somente não são bem vindas, mas também, nos cultivos não orgânicos (a maioria), são combatidas com biocidas ou agrotóxicos, quando não, tiros ou outras formas de luta para evitar a presença de predadores que causam danos ou perdas econômicas.” Com essa conclusão, Claudio que era vegetariano, voltou a ser onívoro.

Quando nos deparamos com um impasse ou obstáculo aparentemente insuperáveis, temos duas opções: A primeira é encará-los com sentimento de derrota ou fracasso, e a segunda, com sentimento de que temos algo a aprender e superar. Se optarmos pela primeira, seguiremos os passos de Claudio Bertonatti e desistiremos de lutar por um mundo melhor, seremos estacionários. Se optarmos pela segunda, entenderemos que vegetarianos e veganos estão conscientes de que não podem fazer milagres, de que não podem tornar o mundo perfeito da noite para o dia e que certamente nem viverão para testemunhar tal milagre. Mas é exatamente por não perderem a fé, por não desistirem, que edificam, ainda que gradativamente, uma sociedade que causa o menor dano possível em si mesmo, nos animais e na natureza, colocando em prática a revolução do amor que Jesus tanto pregava.

Certo dia Jesus disse: “No mundo, passais por várias aflições, mas tende bom ânimo, pois eu venci o mundo.” Ele quis dizer que reconheceu que a vida é sinuosa e possui turbulências inevitáveis (como as que Claudio Bertonatti mencionou), e encorajava seus íntimos a não se intimidarem diante das aflições da existência, mas a se equiparem com ânimo e determinação para SUPERÁ-LAS. Disse que tinha vencido o mundo, superado as intempéries da vida, o que indica que ele não vivia sua vida de qualquer maneira, mas com CONSCIÊNCIA, com metas bem estabelecidas e ao mesmo tempo, deixava bem claro de que todos nós somos capazes de fazer o mesmo.